Feliz dia dos namorados: Como não deixar os boletos atrapalharem a vida do casal
Problemas com dinheiro são segunda maior causa de separações no país. Falar do assunto sem tabu e planejar gastos são parte da receita para evitar problemas
Pesquisa feita pela Serasa mostrou que problemas financeiros são o segundo motivo de separação, perdem apenas para dificuldade de comunicação. Embora seja difícil para muita gente, falar de dinheiro é preciso, já que ele permeia o cotidiano e pode corroer o casamento sem acordos.
A conversa deve ser feita ainda antes do casamento, começando pela decisão de qual regime de união civil será escolhido, para quem vai casar no papel.
Antes de se conhecerem, Stephane e Keli não tinham bens como casa ou carro, conquistas que foram alcançando juntas ao longo do relacionamento. Por isso, ao oficializar o casamento, há um ano e meio, o casal escolheu a comunhão parcial de bens: o que for adquirido após a união é um direito ou uma obrigação (no caso de dívida) das duas.
— Para nós, era importante enquanto casal homoafetivo demarcar nosso espaço na sociedade e deixar claro que, caso acontecesse alguma coisa com uma de nós, a outra teria direito — conta Keli.
Camila Cruz, especialista em educação financeira da Serasa, explica que o primeiro passo é verificar o que cada um possui antes da união e as possibilidades futuras. A partir daí, o casal decide o melhor regime. Pode ser necessário, por exemplo, proteger bens anteriores, como uma herança ou uma empresa constituída por um dos dois. Isso porque na comunhão total de bens tudo é dividido entre os dois em caso de separação, inclusive as dívidas de uma firma, por exemplo. Na separação total, será possível seguir a acumulação individual de patrimônio.
Uma questão crucial nos casamentos é a organização das contas bancárias. A mesma pesquisa da Serasa mostra que, em 2023, 85% dos casais não tinham contas conjuntas, embora especialistas digam que é uma modalidade vantajosa para o planejamento financeiro do casal.
Para Camila, aqueles que escolhem essa opção devem ter em mente a finalidade dessa conta, que pode ser destinada tanto para a gestão das despesas mensais, quanto para um sonho de consumo ou bem, como viagens ou imóveis. Mas ela acredita que também é importante manter contas pessoais para preservar a individualidade de cada um:
— A conta conjunta pode ser muito benéfica porque pode servir como uma reserva do casal quando desejam comprar um bem maior, uma casa, um carro, fazer uma viagem, um investimento a dois. E, num cenário de divórcio, com ela é possível comprovar quanto cada um destinou para aquela conta na hora de fazer a divisão dos valores.
‘Relação de confiança’
Stephane e Keli mantêm contas individuais, mas têm uma outra conjunta só para guardar o dinheiro que sobra das duas. Já a publicitária Anne Caroline e a analista de marketing Samya Baker, de 30 e 31 anos, juntam tudo o que ganham numa única conta conjunta, gerida por ambas.
Vivem juntas há cinco anos em São Bernardo do Campo, no ABC paulista. No começo, tinham contas separadas e cada uma ficava responsável por determinadas despesas. Até que elas decidiram que tudo o que ganhassem seria das duas.
— Se uma paga suas contas, mas, em determinado mês, tem um gasto a mais com alguma coisa e fica pesado, não faz sentido uma ficar apertada e a outra ficar tranquila de grana se somos um casal. Somos muito unidas e pensamos que se uma não está bem, ninguém está. É uma relação de confiança, de pagar contas e deixar o resto do dinheiro lá, rendendo — afirma Anne.
A educadora financeira Mila Gaudencio, consultora do will bank, gosta desse arranjo, mas adverte que, quando o casal vem de realidades muito distintas, é importante alinhar visões e objetivos de cada um:
— O casal precisa ter um nível profundo de autoconhecimento financeiro. É importante cada um entender sua história de vida com relação ao dinheiro, o que isso representa na vida de cada um. Se um veio da falta, da escassez, a relação com o dinheiro é diferente da de quem sempre teve vida financeira confortável.
Pensar na realidade de cada um é importante, inclusive, na hora de definir quem paga o quê. Para especialistas, o ideal é fazer a divisão de forma proporcional à renda de cada um: quem ganha mais paga mais.
Segundo Mila, uma pesquisa feita pelo will bank em 2023 mostrou que 90% dos brasileiros não conseguem comprar tudo de que precisam e não contam com reservas de emergência ou que permitam fazer planos para o futuro. Para ela, pensar a vida financeira a dois pode ser uma oportunidade para essas pessoas juntarem seus ganhos e pouparem mais, alcançando melhores rendimentos. Mas, para isso, organização é essencial, ela diz:
— O mais importante é entender que dinheiro não pode ser tabu, tem que conversar, ter nitidez sobre os objetivos de curto, médio e longo prazos de cada um para saber quais planejamentos devem ser feitos individualmente e quais devem ser em conjunto.
Para Luciana Ikedo, planejadora financeira CFP e autora do livro “Vida Financeira – Descomplicando, economizando e investindo”, é fundamental estabelecer regras claras para a divisão de despesas e definir o que será considerado essencial ou supérfluo, sempre respeitando o ponto de vista do parceiro e buscando um equilíbrio entre diferentes hábitos de consumo.
— Planejar juntos os investimentos e acompanhar o crescimento da reserva financeira pode fortalecer a união e trazer mais segurança para o futuro. A transparência e a cumplicidade devem ser priorizadas para garantir que a vida financeira seja um fator de harmonia no relacionamento, e não de conflito — diz ela.
Especialistas citam planilhas, planners e aplicativos financeiros como ferramentas que ajudam a organização financeira do casal, que pode também procurar a ajuda de um profissional de finanças. Para Anne e Samya, o que funcionou foi a abertura de uma conta conjunta do banco digital Noh. A fintech foi criada por Ana Zucato em 2021, justamente para oferecer contas digitais fáceis de serem administradas por casais em vez de uma pessoa só.
Cada um na sua
O app permite criar caixinhas separadas para reservas do casal com objetivos comuns como uma reforma, um carro novo ou a faculdade do filho.
— A vida é conjunta, por que o dinheiro não? A gente acredita que o casal precisa de um lugar para colocar tudo que é do casal, afinal gastos como aluguel, contas fixas, são gastos dos dois. A conta conjunta é para ser a terceira conta, uma intersecção entre as contas dos dois — explica Ana.
A união bancária e patrimonial, no entanto, não funciona para todos. Quando a empresária Kelly Beltrão, de 41 anos, se casou com o advogado Raphael Castro, de 43, há seis anos, no Rio, eles decidiram que o melhor regime para preservar a empresa dela seria a separação total de bens.
— É um assunto que tem que ser conversado pelo casal antes de noivar. Muita gente leva um choque porque não sabe como funciona, mas hoje eu vejo que, para quem é empresário, principalmente, é realmente muito bom ter essa separação total — diz ela, que hoje tem o marido como sócio.
No casamento deles, as contas são individuais. Como a renda de um é muito parecida com a do outro, eles dividem as despesas. Um paga a escola do filho, outro paga as parcelas do apartamento financiado. E por aí vai. No entanto, se um precisa fazer um gasto extra, a renda do outro fica protegida. Eles mencionam como exemplo as despesas que Raphael teve com uma doença da mãe.
— Gastei muito com cirurgias dela porque o plano estava demorando. E usei o meu dinheiro para isso. Conversei com Kelly, e sei que, se precisasse, ela me ajudaria. Mas nesse caso fiquei com a consciência limpa por não mexer no patrimônio dela — ele diz.
Atenção à dívida do outro
A separação total de bens é o que o advogado especialista em Direito de Família Leonardo Morau, sócio do escritório TT&Co, mais indica a seus clientes, principalmente os que atuam em negócios mais arriscados, com chances de se tornarem inadimplentes.
— A separação total de bens é a que mais traz segurança jurídica para a pessoa que detém um patrimônio ou quando uma pessoa do casal é empresária, com vida mais arriscada, enquanto o outro tem emprego fixo. Não é só pensando no divórcio, mas sim na própria harmonia do casal, e até como estratégia para manutenção do patrimônio da família.
Muitos casais pensam que estão livres de dívidas do parceiro quando não se casam no papel, mas o advogado diz que pode ser um equívoco. Se o casal mora junto, a Justiça pode considerar a união estável para cobrar uma dívida do cônjuge, por exemplo. O melhor é formalizar a separação de bens em cartório para se proteger.
Com dívidas ou não, consultores financeiros, advogados e casais juntos há anos têm um aprendizado em comum: a dica mais valiosa é perder o medo de conversar com naturalidade e frequência sobre dinheiro no casamento, com os devidos ajustes para manter uma relação saudável e sem ressentimentos.
A matéria original é de O Globo e pode ser acessada pelo link a seguir: